O grito do abismo
O grito do abismo
Eu estava sob uma grande danação. Bom, não eu necessariamente, mas sim os outros ao meu redor. Uma praga assolava minha cidade. Ela se espalhava pelo ar, adentrava os pulmões, dilacerava lentamente a carne, roendo a mente e a alma... por algum motivo, sendo sorte ou não, eu era o único saúdavel. Lembro-me de ter levado as medidas de segurança à sério (talvez até demais), o que fez com que eu fosse chamado de louco. É verdade, talvez eu fosse louco, por isso essa cidade sempre pareceu doente. Eu vagava lentamente sobre essas ruas, devoradas pela sujeira e pelos cadáveres. Os prédios, feios haviam se tornado, na verdade já houve beleza alguma neles?
Naquela manhã nada sóbria, fria e sombria eu trajava meu sobretudo, meu cachecol, minha mala de couro e andava comigo uma adaga, uma simples arma de auto defesa, pois recordo-me, na noite anterior vi dois mendigos brigando por um pedaço de carne, enquanto os poucos restantes, além de mim, assistiam eles com um fascínio mórbido. Na verdade, não entendia bem o que fascinava esses poucos sobreviventes. Era eu um mero advogado, lidando com a tão frequente divisão de bens, comum naquela cidade devorada pela morte e segui caminho até a casa de uma cliente, cujo pai havia morrido na noite anterior em decorrência da praga. Segui até o prédio de estrutura moderna, mas sentia desgosto só de chegar minimamente perto de lá, aquela construção assombrosa, feita pela casca de um motor, me enojava. Toquei a campainha e rapidamente, a senhoria vinha me receber. Era a irmã da cliente, uma mulher chamada Olívia. Era uma mulher formosa, magra e bela e bem vestida, porém com uma simplicidade admirável aos padrões de uma alta classe burguesa, (que para minha surpresa, foram devorados pela praga tão rapidamente quanto os mendigos da cidades). Ela me guiou até o apartamento da cliente e lá entrei. Estava o senhor morto, com a sua carne dilacerada e mutilada e seu pescoço coberto de forma desleixada com um pano (para cobrir a praga talvez?) Mas seu rosto parecia sereno de certo modo, dentro de um caixão e em volta os familiares, o irmão do morto, um velho vestido de forma quase infantil como se não tivesse sido ele que escolheu as próprias roupas, a minha cliente, uma senhora gorda, feia e coberta de joias e vestida que nem uma meretriz, e seu esposo, seus filhos, duas crianças de uns 6 e 8 anos, e logo após Olivia. Pensei que por ser tratar de uma família de “honra” considerável talvez isso não fosse tão desagradável, mas me assombrava como o cadáver do falecido parecia um pedaço de carniça jogado à própria sorte na estepe... coloquei minha mala sobre uma mesa e tirei os papeis e uma caneta e sentei-me. Queria terminar logo aquilo, ir para a casa e beber do vinho e da aguardente até apagar deste mundo cruel, não gostava dessa cidade. Tão logo minha cliente falou comigo, com um sorriso que eu tinha certeza que era forçado.
-Então senhor advogado? Como é a situação? Você tão esperto doutor, sabe antes eram raros os intelectuais e sábios bacharéis como o senhor na cidade, e agora menos ainda, pessoas como o senhor são profundamente valiosos agora, especialmente agora.
Olivia me evitava olhar nos olhos, e as crianças riam em segredo. O esposo da cliente tomava de seu copo de conhaque... 1, 2,3,4 na verdade estava no quinto... eu olhava em volta... aquele apartamento escondia algo horroroso... não sabia o que era então comecei com a leitura do testamento
“eu, senhor M. Declaro neste testamento, escrito em tempos de crise profunda, e já prevendo minha própria morte e destino mais que inevitável, os bens que desejo que sejam entregues as minhas adoráveis filhas...”
Antes que eu pudesse continuar levantei a cabeça ao som de copos quebrando. Eram os filhos da minha cliente... aqueles pestinhas estavam causando o caos. A mulher gritava do fundo de seus pulmões, parecendo um urso rugindo. O pai daqueles diabretes, havia caído da cadeira e estava adormecido. O irmão do morto ria junto com as crianças como se ele fosse uma delas e Olívia estava impassível, estoica (não era difícil perceber quem era o cérebro dessa família). Controlado a confusão segui com a leitura do testamento.
“os bens que desejo que sejam entregues as minhas adoráveis filhas, as quais eu tanto cuidei e ensinei e lutei para garantir que tivessem o melhor dos melhor e...”
Novamente fui interrompido, desta vez pelo irmão que me perguntava
-Então senhor advogado, o senhor acompanha o rádio? Eu ouvi dizer que os jogos lá na capital estão muito bons, e tem aquela nova música que lançou, acho que era
“Doce abismo onde estás? Doce Doce abismo. Deus le-ve me para o abismo lá posso ser feliz. Doce abismo”
Eu estava certamente farto daquilo. Esse velho desgraçado não sabe que isso é um assunto sério? O irmão dele acabará de morrer de uma doença incurável e que degrada lentamente o individuo e o que ele pensa e num esporte maldito e numa música estranha? Olivia perceberá minha agonia, sorrindo levemente o que me fez acalmar um pouco, em respeito a ela e ao falecido, e me agradava que os membros da família não tinham percebido.
Eu tentei mais uma fez continuar a leitura do testamento, mas antes me ofereceram um drinque com uma azeitona de Olivia. Eu recusei, na verdade nem sei se beber era a coisa mais sábia a se fazer, na verdade beber algo séria o mesmo que pegar o punhal que carrego e enfia-lo no meu pescoço agora mesmo, na verdade é mais provável que seu bebesse eu pegaria o punhal e mataria cada um deles, talvez Olivia até mesmo se juntasse a mim. Porém nada justificaria tal crime e minha revolta contra esses tolos levaria somente a destruição de mim... mas eu odiava cada momento aqui... meu coração palpitava de agonia e eu era interrompido cada vez mais, ainda não avançará daquele ponto... meu Deus que ódio daqueles diabretes cantando as músicas da última moda antes da praga... coisas feita para as cascas que são, na verdade pensei estar na frente de bonecos vez ou outra... bonecos que o marionetista foi morto à apunhaladas pela praga e que agora fazem o que der na telha... tudo é permitido até mesmo o fratricídio... não era difícil notar... esse homem que estava num caixão agora não foi morto pela praga, sua estava dilacerada, mas não pela podridão, mas sim pela apunhaladas que tomara da própria filha, seu esposo beberrão, suas crianças malcriadas e seu irmão idiota... pobre Olivia, não sabia disso... finalmente consegui ler o testamento
“os bens que desejo que sejam entregues as minhas adoráveis filhas, as quais eu tanto cuidei e ensinei e lutei para garantir que tivessem o melhor dos melhor e tudo que eu podia... para minha doce filha Olivia, dedico minha fortuna e meus livros...”
No momento em que li isso minha cliente gritará, comigo e dizendo friamente
-senhor advogado... é o bastante, pode se retirar
Eu sabia imediatamente o que isso significava... aqueles dois diabretes riam entre si, o irmão do morto sorria, mostrando seus dentes podres e amarelos e o pai acordava de seu sono embriagado. Olivia sabia que tudo aquilo significava e eu também... meu desejo era levantar pegar meu punhal e salva-la... eu imagine a cena e imaginei um lobo saindo do caixão e matando cada um desses monstros comigo... logo afastei o pensamento atroz, me levantei e me despedi... mal saí do prédio e percorri a rua e eu escutei os sons de disparos. 1,2,3, e 4... apressei o passo... sabia que eu tive sorte! Eles me deixaram ir, já não gostavam de mim, assim como não gostavam de Olivia, ela se comportou diferente a reunião inteira e presumo que eu também não agi como eles queriam. Mas do que importa? Não existe mais lei nessa cidade. O governo devorado pela praga e a polícia se canibalizou... tudo que restará foi uma anarquia mesquinha e nojenta, mas por quê eles matam seu próprio pai e sua filha? Percorri as ruas rapidamente, cambaleando... a cena de uma possível intervenção rugia na minha mente, séria o certo a se fazer? Estaria Olivia salva? Ou eu estaria dentro das valas junto com os mendigos e os ricos dessa cidade? Não queria aceitar, eu não sou um homem da violência, esse lobo que me persegue desde que saí do prédio não sou eu... lobo maldito roçando minhas pernas...
No meio do caminho me deparei com uma pessoa, reconheci ela trabalhava na taverna da cidade, (que de alguma forma se mantinha e não fora saqueada). Ela estava assaltando um cadáver e logo logo foi embora sem me notar. Eu e o lobo nós aproximamos do cadáver e eu notei que ele era muito semelhante ao falecido senhor M, cuja família havia canibalizado. Talvez seja ele, mas a essa altura, não importa. De repente ele abriu a boca e falou comigo
-você senhor advogado... você é péssimo
Olhei para ele, sem me importar muito e perguntei
-por que?
-você entrou na minha casa, invadiu meu descanso eterno e nem cumpriu meu testamento... além disso você sabia de tudo e nada fez, e deixará minha filha ser morta.
-o que queria que eu fizesse? Se você tivesse os educado direito, tivesse realmente feito do melhor e não deixado eles se tornarem bonecos, ainda estaria vivo. Na verdade você senhor teve sorte, estar morto parece ser melhor. Ter que conviver com essas pessoas não é agradável, na verdade nunca foi, na verdade é impossível se adaptar, não sou um boneco e difícil é fingir ser um boneco.
-senhor advogado... sabe o que lhe falta? Expectativa e esperança! Vá! Saia da minha frente! Saia dessa cidade! Vá para a estepe e para o abismo que você pertence
Logo andei lentamente... eu sabia que o lobo que me seguia queria me matar e estava esperando a oportunidade, na verdade nem liguei e ele parecia notar e por isso não me matava. Passei por uma banca de revista destruída, obsoleta e vi um pequeno rádio e nele tocava uma música...
“Doce abismo onde estás? Doce Doce abismo. Deus leve-me para o abismo lá posso ser feliz. Doce abismo venha até essa criança desgarrada, na estepe vou te encontrar e nesse frio, frio, frio vou lhe abraçar. Ó abismo refugio criado por Deus para os sofredores, na estepe você habita, no mundo dos mundos e seus filhos do mundo lá estarão”
Segui meu caminho... andei e andei até passar dos limites da cidade, e adentrei na estepe e vaguei, talvez fossem dias, semanas, mas lentamente vaguei... vi a distancia, um buraco, um enorme buraco no meio da estepe... fui até ele e vi que não tinha fundo, mas tinha uma pequena escada espiral que levava até o fundo... mas sabia que a escada era inútil e que pular era o caminho.... eu me sentei, pensando se deveria ir ou não. O lobo também se sentou perto de mim e observamos o abismo... eu olhei para o lobo e perguntei
-vale a pena pular?
-Quem sabe? Respondeu o lobo, com a voz de Olivia
-Eu quero pular?
-você quer?
-Meu mundo está podre, por quê não?
-você deveria
-por que?
-porque seu mundo está podre- disse o lobo tornando-se Olivia.
-mas não há outra opção?
Olivia sorriu e disse
-não. Seu mundo está podre, destrui-lo é a única forma de ter liberdade. Aquele que quer liberdade deve primeiro destruir um mundo. Você vai ao nada e voltará do nada.
Eu pensei sobre isso e me levantei... olhei para meu lado onde nada havia e mais... fechei os olhos e pensei
-tolo, tolo, tolo. Mas eu vou voltar.
Então eu pulei.
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